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Pêra, estás a três palmos de distância do meu nariz. Chegaste aqui de algum modo e por algum artifício. Fui eu. Pela manhã, passei na feira perto do trapiche e do farol. Não havia, a rigor, ninguém na praia. Esqueci por que te comprei. Em princípio, eu queria apenas maçãs; porém, achei-te com muita vida para que te negasse. Não obstante a pilha de verdes, eras tu, ou depois tu te tornaste. Vieste humilde, envolta em um saco de pão, e creio mesmo que nem pensei em ti no caminho até a casa. Senti, contudo, agora há pouco, que tinhas vocação para enfeite. Pus-te numa bandeja sobre o criado-mudo ao lado do sofá que ora me suporta. Sentei para ler o jornal, mas tu me seduzes. Joguei as folhas com cheiro forte de tinta no chão e me apego a ti. Entorto-me até que estejas muito perto de meu rosto. É o nosso destino, acomodemo-nos. Parece que não és à-toa. Algo me fez dar aquelas moedas em teu nome. Outra razão me levou ao local. Alguém te colocou exposta. Nasceste de alguma terra. Vamos cometer uma violência: estás comigo, pois, para mim, foste bela. Gosto de tua cor e de tua silhueta. És muito simples e serena. Quem sabe tu gostes também de mim. Meu caminho cruzou com o teu e isso é, de certo modo, tudo ou muito. Minha vida não é a mesma agora que chegaste. Nem esta sala. Tampouco tua história. Tu te inscreves na minha memória e quanto mais te encaro tantas outras coisas te sou e me és. De fato, eu paro em ti e fixo. Abro os lábios e lanço: diz-me. Há bastante silêncio. Recusas-me qualquer resposta, o que não indica que não me tenhas compreendido. Talvez eu seja portador da ignorância de tua língua. Ou quem sabe dispenses a comunicação, tendo se fechado nestas ancas gorduchas após um olhar primitivo e desinteressado sobre o universo. Nada se te apresentava incógnito ou digno de curiosidade e optaste pela conversão em pedra mais folha. Poderás ainda consistir no embrião de um ente que dorme com pálpebras lassas e um tanto divinais. Não é meu desejo que acordes, não por enquanto. Ouso mirar-te sem saber que um dia me criaste em um sopro. Tocar-te? Postergo um pouco. Observo tuas sardas salpicadas por toda a casca. Julgo serem cicatrizes de milênios, ou a tenra doçura do acaso. As minhas bochechas, de certa forma, espelham-se em ti e para elas tu significas realeza. Desliza já por minhas veias o arrepio trágico a revelar que terei saudades de tua presença. Isso, em geral, chamo de amor. Sei que, como o meu, o teu corpo carece de eternidade. Tenho forte intuição, profecia, de que perecerás primeiro. Continuarás dentro da minha cabeça e pintarei quadros em tua homenagem. Lembrarei eventualmente de tua decadência sublime. Em suma, nada mudará a não ser uma perda de possibilidade, qual seja, a de ter certeza de que te apalpo, o que, aliás, pode-se mitigar nos sonhos e alucinações. Por outro lado, cogito a idéia de te unir a mim. Cravar os dentes em teus músculos de areia. Eu jamais usaria faca contra a tua carne. Seria minha própria boca até desfaleceres, lambuzar tua pele áspera, como um sacrifício. Glorificar-te pela saliva: a própria redenção. Tranqüiliza-te, não disponho de coragem. Mais fácil seria eu fabricar um escafandro ou enfiar-te logo em uma redoma. Formigas. Tenho pânico de que sejas alvo de um ataque noturno e de que cupins te açoitem, pássaros te roubem. Para mal ou para bem, já me afiguras como um porto seguro e inesgotável. Chamar-te pêra soa já absurdo. Pêra é o pórtico de qualquer fruta estúpida com tais trejeitos. Todavia, admito que o acento circunflexo sobre a letra ‘e’ representa fielmente a tua voluptuosidade de cera. Julgo-me de todo incapaz, ademais, para batizar-te com outro nome. Tanto faz. Compreendo, sobretudo e neste exato momento, que tu sejas a lágrima perdida de um dragão corcunda, e eis o que deveras me resta.